10 de Espadas

Aline Ferreira - Tarot Sereno
3 min readApr 23, 2021

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Sempre gostei de baralho e a curiosidade de ler o futuro nas cartas é algo que está presente desde criança. Lembro de um dia específico em que isso ficou bastante patente: numa tarde em que nós, Os Quatro Primos, estávamos reunidos (feito quase heroico, dada a pouca disponibilidade das nossas mães de estarem presentes no mesmo local simultaneamente) jogando baralho com um tio que explicou a sequência certa das cartas de corte pra que pudéssemos continuar a jogatina. Toda hora alguém começava baixinho o coro de “jota-quê-cá, jota-quê-ca, jota-quê-cá” que ia aumentando de volume conforme íamos nos empolgando.

Depois de um tempo, meu tio, já cansado de entreter quatro crianças de até sete anos de idade, começou a brincar de adivinhar o futuro. “Não sei o significado não, só sei que espadas é ruim” e a gente insistindo, berrando de volta numa ferocidade atroz “mas tio, explica pra gente!” como se o conhecimento brotasse na mente dele. Lembro que cheguei a pensar que ele só não queria mesmo era explicar como funcionava, já que estávamos ali há bastante tempo. O que começou com uma breve indicação sobre o significado do naipe terminou com um berro a cada carta de espadas tirada do montinho.

Minha atenção se focou no 10 de Espadas aquele dia. Não sei o porquê.

Hoje, olho pro 10 de Espadas e vejo sofrimento, mas um sofrimento bastante específico de quem nadou, nadou e morreu na praia. A sensação de que se tivesse esperado mais cinco minutos, o dia amanhecia e a vida podia seguir seu curso normal, sabe? Dava pra ter esperado aquele ônibus e evitado morrer em 50 reais de Uber, mas a gente não tinha como saber. Não dava pra garantir que entre o pouco certo e o muito duvidoso, até o muito podia acontecer. Às vezes o muito parece pouco, eu acho. Faz parte.

O que o 10 de Espadas significou pra mim naquele momento? Nada, já que eu não estudava tarot naquela idade. Bastante, se pensar que, apesar do divertimento dos sobrinhos, meu tio estava mentalmente cansado (de um jeito que só hoje consigo entender) e que a brincadeira teria fim. Nós quatro sabíamos disso, mas mesmo assim tentamos evitar a qualquer custo.

A saída da infância é muito 10 de Espadas. É uma jornada mental, cheia de altos e baixos, de situações que trazem dor, de nostalgia dolorosa, de nevralgia melancólica. A gente só se dá conta disso anos depois, com maior repertório de palavras pra exprimir sentimentos, mas é meio que isso que acontece.

Outros 10 de Espadas acontecem nas nossas vidas. A perda de um emprego. O luto. O término de um relacionamento. Uma cirurgia para retirada de… alguma coisa. Até o fim de uma banda, o cancelamento de uma série, a morte de um artista que se admira muito pode ser representada pela “carta mais temida do tarot”, segundo alguns. O fim abrupto de tudo aquilo que nos estimula e desafia mentalmente, de tudo aquilo que é um sopro de ar fresco, de tudo aquilo que faz nascer novas ideias e comunicá-las para o mundo.

Inaugurei esse espaço pelo fim. Não foi qualquer fim, mas o fim mais dramático, dolorido, temido, indesejado possível. Talvez isso me fale sobre algo que não quero que me seja dito… A lembrança de ser uma criança intrigada com significado de cartas de baralho é um lugar confortável do qual eu não quero sair. Talvez seja esse o recado da vida: se eu continuar me recusando a sair do passado, algo vai me tirar de lá a força. Vai me forçar a ver que essa fase, essa etapa, esse ciclo chegou ao fim. Ao mesmo tempo, vai me dar a chance de sonhar com o sol nascente do horizonte. Espero estar viva pra apreciar esse momento, ao invés de apunhalada dez vezes pelas costas enquanto planejava tomar um banho de mar na alvorada.

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